terça-feira, 26 de outubro de 2010

Carona

Encostei o carro e fui ao seu encontro. Ela deu um leve salto para se por de pé.
– Pensei que Gabe estivesse com você... – Como sempre, a menina ia direto ao ponto, antes mesmo de um “oi” ou um “boa noite”.
– O que está fazendo aqui fora, Aretha? Porque não esperou lá dentro?


– Eu não sei... Eu nem sei por que estou aqui. Não devia mesmo, ele me deixou... Mas Gabe tem esse efeito sob mim, eu não consigo raciocinar direito.

Eu senti pena.
– Acabei de deixar Gabriel na república.


– Ah... Tudo bem... Eu vou pra casa... – Disse ensaiando sua saída.
– Espera, Aretha... Você não quer entrar? Eu posso preparar um lanche...


– Nã... Obrigada, não estou com fome.
– Você está de carro? Quer que eu te leve? – Eu estava mesmo preocupado. Ela não estava normal. Se estivesse, estaria baixando as tamancas, no entanto parecia calma... Aliás, soturna.


– Não... Mas não precisa... Eu vou caminhando...
– Mas, Aretha... Não é tão perto assim... Não me dá nenhum trabalho, o carro está aí. Venha, entre. – Indiquei, antes de dar-lhe tempo para pensar.


A pé não era tão perto, mas de carro não era tão longe. Em poucos minutos estávamos na porta da casa de seus pais. Ela não abriu a boca nem uma vez, e eu não sabia se estava grato por isso ou não.
– Chegamos, Aretha. – Disse com as mãos ao volante.
– Quer entrar? Mamãe está em casa, papai não.


Isso foi uma espécie de provocação ou o quê?
– De outra vez... – Respondi.
– Amanhã é meu primeiro dia de aula na UNESim... – Mudou de assunto. Em que momento ela decidiu que era hora de falar?


– É verdade... Eu soube... Animada?
– Estava... Antes... Papai alugou uma casa pra gente... Eu preferia morar numa república, mas o Thales ficou eufórico com a idéia da casa e eu não quis brigar por causa disso. Com o Thales, com certeza a casa estará sempre cheia mesmo...


– Seu irmão sempre foi agitado mesmo, é verdade...
– Bem... Não sei agora, que está com a Alanis... Talvez ele sossegue um pouco...


– Eles estão namorando, então? – Eu fiquei curioso. Por Alanis, e por Gabe.
– É... Sei lá, Jack... Thales se mostrou bem interessado... Nunca vi meu irmão assim... Ele só gosta de festas e agitos, nada de compromisso... Ele me lembra o tio Herman. – E pela primeira vez naquela noite, Aretha sorriu. – Quer dizer, lembrava... – Corrigiu-se.


Tomei um susto. Tara materializou-se na minha porta. Não vi de onde ela surgiu.
– Boa noite... O que estão fazendo aí? – Perguntou num sorriso simpático.

Tinha um longo tempo que eu não a via. Mas ela não parecia ter mudado nada.


Nós descemos do carro, e Aretha correu para abraçá-la, como se não a visse há muito também.
– Mãe! Jack me deu uma carona...
– Estou vendo...


Eu não sabia o que fazer. Se eu cumprimentava Tara, se botava minhas mãos no bolso, se voltava pro carro e ia embora. Aretha soltou-se de sua mãe.
– Não vai falar com o Jack?
– O que aconteceu com o “tio” Jack? – Ela sorriu novamente. Eu senti um frio na barriga inexplicável.


– Ai, mãe! – Aretha reclamou. Não adianta, pais sempre vão constranger seus filhos.
– Oi, J. – Tara me cumprimentou.


– Oi, Tara... Bem... Eu vou indo... Aretha já está entregue.
– Ah, não Jack, você podia entrar...  – Aretha reclamou. – Estávamos falando da UNESim, mãe...


– Ah, é? Bacana... – Tara respondeu sem graça.

Sinceramente eu não tinha vontade nenhuma de entrar. Não que a conversa estivesse desinteressante, mas aquela casa sempre me causou desconforto. Poucas foram as vezes que estive lá. Apenas para deixar ou buscar Gabriel, ou nas raras festas em que era convidado.


– Obrigado, Aretha, mas estou chegando de viagem, preciso ver como estão as coisas na minha casa...
Ela murchou novamente.
– Então tá... – E fez um bico.


– Boa sorte amanhã... – Desejei.
– Pelo visto vou mesmo precisar...


Eu me despedi das duas e voltei pra casa. Já não bastasse serem tão parecidas, elas precisavam usar o mesmo perfume? O cheiro ficou impregnado no meu carro. Preciso me lembrar de mandar o Reginaldo lavar.



sábado, 23 de outubro de 2010

Pai e filho


Eu resolvi reiterar o convite que já tinha feito antes a Gabriel. De pegarmos o carro e meter o pé na estrada. Seria bom pra ele tentar arrumar a confusão da sua cabeça, ou melhor, de seu coração.


– Não sei se seria uma boa, pai... – Foi a sua resposta.
– Porque não?


– E se a Aretha resolver aparecer? Ou a Alanis...

De fato, eu estranhei Aretha não ter pegado o primeiro avião atrás de Gabe. Não entendia porque ele achava que Alanis faria isso, mas não ousei comentar.


 – Acho que se fosse para alguma delas voltar, já estariam aqui...
– Perdi a Aretha, não foi, pai?


 Putz! Quem sou eu pra responder?
– Filho, que tal conversarmos sobre isso na estrada?
Então, de repente, ele pareceu dar por falta de algo:
– Cadê a Ana?


– A gente pode falar sobre a Ana no caminho também...
– Ta certo... – Respondeu desconfiado. – Vou fazer uma mochila básica...


– Básica heim, Gabe!
– Ta bom! – Disse mais animado, e dirigindo-se para seu quarto.


Nos encontramos quinze minutos depois na garagem.
– A gente vai no conversível? – Gabe perguntou descrente. – O que deu em você?
– Um cara não pode mais tirar uma onda? A gente vai pro mato mesmo... Não vamos chamar atenção.


Como eu havia proposto, fizemos uma viagem sem destino certo. Foi uma semana feliz pra mim. Além de conhecer lugares e pessoas novas, pude passar um tempo com meu filho, e saber um pouco mais sobre os assuntos de seu coração.


Ele confessou que Alanis fez uma grande confusão nos seus sentimentos quando a viu envolvida com Thales, e que não sabia ao certo se o que estava sentindo era ciúme de homem ou de irmão. E ainda tinha a Aretha. Apesar de fascinado pela garota, não me parecia seguro em se entregar.


De minha parte conversei abertamente sobre a Ana, o meu pedido patético, e sua partida, levando um pedaço enorme meu embora ela não acreditasse muito nisso.


Parei para deixar Gabe na porta da república na véspera do primeiro dia letivo. Era noite e não havia movimento.
– Quer entrar, pai? Você nem conhece minha república. – Gabriel convidou.


É claro que eu conhecia. Não era a minha república, mas cansei de ir a festas ali... Eu resolvi deixar essa passar. Era um ótimo pretexto para matar a saudade de Alanis. Tinha tempo que não via minha afilhada.
– Ah, quero sim, Gabe!


Lá dentro, percebi que não havia mudado muito. Móveis novos algumas disposições diferentes talvez. Aquela república era bem diferente da minha. A começar pela quantidade de quartos, depois pelo espaço, a dele era para outra classe social.


Fomos direto para seu quarto. Devia ser o dobro do tamanho do que tive. Na parede posters de suas bandas preferidas. Incluindo a do Hell’s. Isso me deixou nostálgico.


Mergulhado que estava em minhas lembranças não ouvi uma palavra do que meu filho dizia até ele chamar minha atenção:
– Caramba, pai!!! Você anda tão desligado. Já sei... Estava pensando na Ana, não é? Confessa!
– É... – Menti. – Onde é o quarto da Alanis? – Perguntei mudando de assunto.


Gabe mudou sua expressão. Provavelmente não gostaria de encará-la, principalmente depois da ligação. Mas eu não poderia ir até lá e não dar um beijo na minha afilhada.
– Bem aí do lado, depois da porta do banheiro...
– Você vai lá comigo ou prefere ficar aqui?


– Eu vou...

Eu sabia! Gabriel muitas vezes se portava como o garoto mimado que foi desde bebê, mas sabia encarar seus erros e tropeços.


Batemos na porta e esperamos. Alanis não demorou a abrir, e ao me ver já pulou em meu pescoço.
– Dindo! Quanto tempo!


Depois que me soltou, continuou:
– Veio conhecer nossa república?
– É... E ver você. Como você está?


Alanis olhou para Gabe antes de responder:
– Estou bem. Estou muito bem.
Gabriel se aproximou com passos tímidos.
– Err... Alanis... Me desculpe... Eu... Não tinha que ter me metido...


– Olha, Gabriel, – ela devia estar um tanto chateada para chamá-lo assim – você não me deve desculpas por isso, não ligo pros seus ataques, só fiquei chateada pela sua grosseria no rádio. Mas peça desculpas pra Aretha! Ela está magoada e com razão...
– É? Não parece... Meu telefone não tocou nem uma vez...


– Você bateu com a cabeça?! O que você queria, Gabe?! Ela ouviu você dizendo que não queria falar com ela! Porque ela ligaria pra você? Eu não ligaria...
– Eu estava chateado... Ela teve uma crise de ciúme...


– Isso não justifica nada...
Eu interrompi a discussão:
– Bom, eu vou deixá-los... Tenho algumas coisas pra resolver também... – Mentira! Eu não tinha absolutamente nada pra fazer, nem motivos pra ir pra casa.


– Ah, não, Dindo, péra um pouco! Eu nunca te vejo...
– Porque não vai passar o próximo fim de semana lá em casa?


– É! Porque não vai? – Gabriel se animou.
– Err... Eu combinei de passar esse na casa da tia Tara. – Respondeu sem jeito, enquanto Gabriel fechava a cara.


– Ah... De outra vez, então... – Sugeri.
– Posso ir jantar durante a semana? Eu e Gabe?


– Claro, querida! Espero vocês, então...
– Combinado.


Tive a impressão de que minha noite seria longa, quando chegava em casa. Antes mesmo de estacionar, avistei Aretha sentada no muro do jardim.



quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Colocando tudo de volta no lugar

Não demorou muito, como imaginei. Eu estava lendo meus e-mails no computador do escritório, quando ele apareceu.
– Pai... – Chamou melancólico.
– Diga, Gabe... – Tentei parecer indiferente, como se nada tivesse acontecido.


– Eu queria conversar...
– Ah, tudo bem, já terminei aqui mesmo...


Eu levantei para falar com ele. Gabe sempre foi assim. Sempre pediu conselhos, sempre me encarou como um amigo mais velho com quem podia contar. Isso tinha vários lados positivos. Mas alguns negativos estavam começando a me incomodar.
– Pai... Eu voltei antes do chateau.
– Eu percebi. Quer contar o que aconteceu?


– Ai, pai!!! – Grunhiu. – Eu acabei brigando com a Aretha de novo... Mas dessa vez... Acho que pisei na bola... Mas, pai! Que saco!

Eu não estava conseguindo entender nada.
– Gabriel, meu filho...


– Eu sei, eu vou explicar... Eu vou tentar... Ah! As mulheres! São tão complicadas! – Não me diga! – Pai! Na verdade... Eu acabei brigando foi com todo mundo...

Eu me preocupei. Aquela não era a natureza de meu filho. Que poderia ter acontecido de tão grave?


– Estava tudo bem... Estávamos lá curtindo a casa, a cidade praiana. – Ele continuou. – Até o Thales dar uma de engraçadinho pra cima da Alanis. – Gabe franziu o cenho com raiva. – E daí eles ficaram... E não paravam mais de se agarrar...
– Gabe, me desculpe... Se o Marley me dissesse isto com esta entonação eu até entenderia... – Posso até dizer que EU fiquei aborrecido, afinal a guria é minha afilhada. – Mas porque isto te aborreceu?


– Por que! Por que! Porque a Alanis é como uma irmã pra mim, pai, você sabe! E o Thales... Bem... Ele é meio galinha... Antes de ficar com ela deu mole pra metade das meninas que passavam de biquíni na frente dele.
– Mas, Gabe... A Alanis não é mais nenhuma garotinha. Eu não consigo entender porque motivo você brigou com a sua namorada.


– Ah, eu já disse! As mulheres são loucas! O problema era entre mim e o Thales, e eu fui falar com ele. Falei só pra ele respeitar a Alanis, pai... Não disse nada demais... Mas ele veio com o papo: “Gabe, você ta amassando a minha irmã e eu não me meti nisso!” Mas eu nunca desrespeitei a Aretha, pai... E ela bem que queria!
– Gabriel! – Eu o censurei.


– Então, a doida da menina resolveu morrer de ciúmes da Alanis e perguntar por que eu tava tão preocupado com ela... Eu repeti: “porque ela é quase uma irmã”. Daí ela disse a mesma coisa que o Thales e daí eu disse que o irmão dela era um galinha e ela gostou menos ainda!
– Com razão, não acha?


– Como assim, “com razão”, pai?! Você também acha que eu estou errado?!
– Filho... O Thales estava forçando a barra?


– Não...
– Estava fazendo alguma coisa sem o consentimento da Alanis?


– Não...
– Então, Gabe, você não deveria ter se metido. Realmente não vejo motivo pra você ter ficado tão irritado... A ponto de deixar seus amigos e sua namorada... E voltar sozinho pra casa.


– Fiz besteira, num fiz? – Eu fiquei com pena do garoto. Na idade dele eu tinha tanta malícia. Eu agora o vi com cinco anos, quando quebrou o primeiro vaso de cristal na casa de sua mãe.
– Depende... Mas você primeiro precisa saber o que sente, filho...


– Que quer dizer, pai?
– Bom, Gabriel, foi você mesmo quem disse não saber se ama a Aretha...

Eu não quis dizer a ele, mas no fundo, por mais que gostasse de Alanis como irmã, não achei que o ciúme que ele sentiu fosse fraternal de alguma forma.


No dia seguinte, um pouco mais calmo, ele voltou a falar no assunto.
– Pai... Eu não consegui dormir... Acha que posso estar confundindo as coisas? Tipo... Acha mesmo que eu não devo defender a Alanis?
– Depende do que considera defender, Gabriel.


Eu superprotegi meu filho. Hoje reconheço que eu era muito mais independente e desenrolado na sua idade. Nunca recorri a meu pai para me dar conselhos, em parte porque éramos muito diferentes. Eu era muito mais amigo de Gabe.

– Como assim?


– Gabe, a gente só defende quem quer ser defendido.
– Eu não posso acreditar que ela estivesse gostando daquilo... – Ele disse com rancor, e eu comecei a ter certeza de meus instintos.


– Ela te falou isso, filho?
– Não! – Respondeu frustrado.


Ficamos um tempo sem falar. Depois ele continuou:
– O Thales e a Aretha vão pra UNESim agora, depois das férias.
– Ué! Pensei que já estivessem lá...


– Não, pai! Você não ouviu nada aquele dia? Ela tava lá com a escola, conhecendo a UNESim. A gente se esbarrou no CRAU. Daí a gente almoçou junto, eu acabei convidando ela pra festinha que ia rolar no MDC... Daí a gente acabou ficando... Depois deixei ela na casa d’uma amiga dela lá...
– Ah... – Essa era história que não escutei por estar atordoado demais.


– Acha mesmo que fiz errado? Que é problema da Alanis?
– O que sente de verdade por ela, filho?


Aquela pergunta pegou Gabriel de surpresa, e ele se postou na defensiva.
– O que quer dizer?
– Eu não quero dizer nada... Eu estou perguntando...


– Eu não entendi sua pergunta... – Dissimulou.
– É claro que você entendeu... Você me disse não saber o que sente pela Aretha, e agora fica enciumado de ver Alanis se envolvendo com seu amigo.


– Primeiro, eu não fiquei com ciúmes, eu fiquei preocupado! Segundo, aquilo não pode ser chamado de envolvimento, era apenas uma agarração. Terceiro, de que amigo você está falando?
– Ah, Gabriel! Dá um tempo, vocês sempre foram amigos. Andaram afastados desde que entrou pra faculdade, mas se conhecem desde pequenos. E você ainda não respondeu a minha pergunta.


Gabriel pareceu se dar conta de que estava confuso quanto a seus próprios sentimentos, e disse cabisbaixo:
– Não posso voltar pra lá... Não quero.


O bip do meu rádio tocou. Pedi um minuto ao Gabriel para atender.
– Alô.
– Dindo? – Era a Alanis. – O Gabe apareceu por aí?


– Ã-hã... Ele está aqui comigo...
– Ah! Ainda bem! Eu fiquei preocupada, Dindo... Ele saiu daqui igual um maluco. E desligou o celular. Chegamos a ir atrás dele no aeroporto mas não achamos. Posso falar com ele?


Gabe não gostou quando lhe passei o celular, mas ele teria que fazer isso mais cedo ou mais tarde, não teria?
– Oi. – Atendeu de forma seca.
– Hey, Gabe... A gente tava aflito aqui... Você tá bem? – Gabriel não fez questão de mudar a ligação para sigilosa e eu acabei por ouvir toda a conversa.


– Tô ótimo, e vocês estão tão aflitos que só ligaram agora.
– Ligamos pro seu celular e pra república. Não pensei que você fosse pra casa do seu pai...


– É! Parece que seu raciocínio foi afetado quando pousamos na Ilha.
– O que deu em você, Gabe? Porque está falando assim comigo?


– Você queria saber se eu estava bem, não é? Estou ótimo! Você já pode desligar.
– Olha, do jeito que você está grosso eu devia mesmo, mas a Aretha quer falar com você...


– Eu não quero falar com ela.
– Deixa de ser infantil, Gabriel!


– Por falar em infantil, você sabe que ele é mais novo que você, não sabe?
– É, Gabe, você conseguiu! Perdi minha paciência. Tchau!


Ouvi o bip e o ambiente ficou mudo. Gabriel baixou a cabeça e me devolveu o aparelho, sem conseguir olhar nos meus olhos. Decidi não pressionar.
– Eu vou para o meu quarto. – Anunciou já saindo.

Eu não disse nada.