domingo, 28 de novembro de 2010

Pacto

– Ainda bem que eu sou alguém, J! E por favor, não me mande embora outra vez.

A voz de Aretha encheu a sala e o meu coração. Eu não tinha mais idade pra isso. Nem me sentia com forças pra encará-la.


O que ela estava fazendo ali? De volta, depois da minha atitude tão grosseira?
Como se lesse meus pensamentos, ela respondeu, ajoelhando-se ao meu lado:
– A Ana foi falar comigo... Se o que ela me disse é verdade, sabe o quão surreal a cena pareceu?

Eu podia imaginar. A Ana não devia ter feito isso, o que deu nela?


Eu não conseguia dizer nada. Ela continuou:
– Eu sou uma Webber, Jack. Infelizmente pra você, eu posso dizer... Mas meu pai quase morreu pela minha mãe... Eu não vou desistir de você assim. Eu senti, J... Senti quando me beijou. Por favor, não se negue. Por favor, não me negue...


– Não é tão simples assim, criança... – Finalmente me expressei.
– Eu sei que não! Não sou nenhuma inconsequente... Mas simplesmente não consigo dizer não para o que sinto. – Aretha fez uma pausa. – Eu estarei do seu lado, J... O tempo todo.


Ela não podia dizer isso. Como uma criatura tão nova seria capaz de me defender? Porque estaria disposta a enfrentar a própria família por minha causa? Eu nem merecia.
Escorreguei do sofá para encará-la.
– Vai por mim, não vale à pena, anjo!
– Eu tenho certeza que você está errado.


Deixei que ela me beijasse. Aceitei que era uma luta perdida.


Eu me distraí e Aretha me derrubou no chão com um golpe. Gentilmente, deixei que ela achasse que podia me prender.
– Viu? Não foi tão difícil...
– Anjo, eu só espero que esteja tão preparada quanto realmente acha que está.


Esperei ela bobear e revidei o lance. Aretha estava imobilizada sob mim.
– Tão tolinha... – Provoquei.
– Você que pensa... Eu estou exatamente onde queria estar.


– Garota... – Alertei. – Você não tem nenhuma noção de perigo, tem?
– Tenho, mas sou uma menina corajosa.


Foi irresistível. Desta vez, partiu de mim a iniciativa de beijá-la. E momentaneamente consegui me desligar de todos os problemas que nos aguardavam.


Levei Aretha até em casa aquela noite, mesmo ela insistindo em querer ficar.
– Entra um instante, J. Você ainda não conhece meu quarto... – Ela convidou quando chegamos.
– Outro dia, anjo.


– Porque sempre outro dia? Porque nunca pode ser agora?

Porque ela tinha que questionar tudo?
– Está bem, Aretha... Vamos lá...


Atravessamos a sala que eu já conhecia até a porta do seu quarto. Olhei para os lados com um receio tolo de dar de cara com alguém conhecido. Quanta bobagem!


Aretha abriu a porta e entramos. Foi um choque. Era um quarto tão... Menininha... Em tom lilás e com lençóis estampados de coração. O que eu estava esperando? Não disse nada disso para ela, claro.
– Muito bonito, Aretha.
– Pode dizer... É infantil!


– Não... Bem... – Eu me enrolei demais pra responder.

Aretha riu.
– Você é tão engraçado, J... Eu gosto dele mesmo assim...


– Eu te assusto?
– Um pouco... – Confessei.


– É só decoração... – E me beijou.


Eu tentei voltar à realidade.
– Anjo... Quando e como vamos falar com seus pais? – Não tive coragem de pronunciar os nomes.
– Ah, J... Não podemos aproveitar um pouquinho enquanto não sabem? Só um pouquinho... – Ela estava jogando seu charme pra cima de mim outra vez. Descobri que sentia muita pena de mim mesmo toda vez que ela fazia isso.


– Isso não é certo! Você parecia mais determinada há algumas horas atrás.
– Eu estou! Não me desafie... Não é isso! Eu também queria conversar com o Thales antes.


– Porque com Thales primeiro? Não entendi...
– Thales não é só meu irmão, J. É meu melhor amigo. Eu não escondo nada dele e acho que ele pode nos ajudar com isso.

Eu não sabia se funcionaria. Não acreditava que Thales aceitasse isso tão “numa boa”. Era sua irmã, pelo amor de Deus!


– E quando pretende falar com seu irmão?
– Ele viajou com a turma de História... Só volta na segunda!


– Ah, não! Não, não, não... Melhor resolver de uma vez, anjo. Eu vou ligar pra sua mãe e marcar de me encontrar com eles o quanto antes.

Eu não esqueci. No passado, uma questão tão importante adiada, mudou o rumo da minha vida.


Aretha se pendurou em mim como um macaquinho. Eu já devia ter me acostumado com esses seus gestos.
– Ah, J... Estava pensando em passar o fim de semana com você... Por favor, por favor, por favor!



terça-feira, 23 de novembro de 2010

Imperdoável

Abri os olhos e me dei conta de que eu não estava sonhando. Eu tinha acabado de beijar a filha da Tara.
– Anjo... Por favor... Vá para casa. – Implorei mais uma vez. Não era a frase que ela esperava ouvir.
– Quer mesmo que eu vá embora, J?


– É o que é certo. – Não consegui mentir. – Vou pedir pro Reginaldo te levar.
– Não precisa. Eu sei o caminho!

Eu desejei ter um mecanismo pra voltar meio minuto no tempo. Teria conseguido evitar?


Eu queria ter segurado, mas tinha que deixá-la ir. Eu a desejava em meus braços, mas era melhor que ela me odiasse.


Mandar Aretha embora não diminuiu minha culpa, e mergulhei numa depressão sem fim. Não me orgulho disso, mas me orgulho menos ainda do que fiz.


Eu parei de atender até as ligações de Gabriel. Parei de contar os dias. Passava meu tempo deitado na cama e mal saía de lá. Nem mesmo para comer. Ouvi a ladainha de Claudinete reclamando, mas não dei atenção.


Até o dia que abri os olhos e dei de cara com Ana na minha cabeceira.
– Jack, o que é isso? O que deu em você?
– Nada! Só tenho tido muito sono... Você não devia estar em algum lugar da África Central? – Perguntei de forma malcriada.


– Levanta daí! Anda, Jack! – Ordenou.
– Não quero, Ana! Não enche! Foi você quem me deixou, se lembra? – É... Parece que virei um cretino de vez.


Ana fingiu não escutar e me colocou embaixo do chuveiro.
– Sou grandinha o suficiente pra saber que não fui eu a causadora deste estrago, então pode começar a falar! – Sua voz estava tão imperativa que pensei estar ouvindo minha mãe.


Eu contei tudo para Ana enquanto tomava banho. Tudo. Não omiti uma vírgula. Nem do que só aconteceu na minha cabeça doente. Quem sabe se ela me desse uma surra bem dada, as coisas que estavam soltas, não voltariam pro lugar?


Mas ao invés disso, Ana me confundiu ainda mais. Continuávamos a conversa na sala quando ela perguntou:
– Porque mandou a garota embora, J?
– Que parte do “ela é mais nova que meus filhos”, ou do “ela é filha da Tara e do Mark” você não entendeu?


– Quem parece que não entendeu foi você, Jack! Pela primeira vez em vinte anos você finalmente está perdidamente apaixonado por alguém, e o que você faz? Se nega!

Ela só podia estar maluca!
– Eu não estou perdidamente apaixonado... Só estou... Desorientado! É isso, confuso... A menina é a cara da mãe... Era de se esperar.


– Ela não tem nada a ver com a Tara, J... Duvido que esteja apaixonado apenas pelo rosto da Aretha... Você fala dela como eu já quis que falasse de mim...

Eu me ressenti. Ana era mais um relacionamento mal resolvido na minha vida.


Mas antes que eu dissesse qualquer coisa, ela emendou:
– Eu estou bem... Só quis ilustrar... Mas se quer um conselho, não lute contra isso... Só vai te deixar pior.
– Eu não tenho alternativa, Ana... Entenda...


– Então procure um terapeuta, J... Não dá pra viver desta maneira! Seus filhos também não merecem ser ignorados. Gabriel me ligou. Quer saber o que está acontecendo, já que você não atende o telefone. Com certeza Claudinete tem ordens de não falar. Mas eu não sou sua secretária, Jack Miller!
– O que vai dizer a ele?


– Eu?! Nada, ué! Diga você! Atenda o seu filho, fale com o Gabe! A Júlia também está preocupada...
– Foi ela quem te falou, não foi?


– Jack... É impossível para uma mulher não perceber determinadas coisas... Júlia não falou nada com você porque viu que estava feliz, como há muito não te via... Mas é claro que ela notou... Só preferiu fingir que não. Convenhamos, ela também não é sua mãe...


Depois que Ana foi embora, eu tentei re-organizar meus pensamentos para poder re-organizar minha vida. Gostava de fazer isso tocando.
Na minha cabeça, travava-se uma batalha.


Eu estava lutando, mas a imagem do seu rosto e o gosto de sua boca, não saíam da minha cabeça. Quando parei, já tinha concebido uma melodia inteira.


Olhei pela janela e havia anoitecido. Meus dedos doíam. Precisava pensar em outra coisa, precisava ocupar minha mente.


Eu me joguei no sofá. Queria dormir, mas não tinha sono. Ouvi a campainha tocar. Quem poderia ser agora? Eu não tinha condições de receber quem quer que fosse.


Ouvi os passos que indicavam que alguém tinha acabado de entrar na sala.
– Eu não estou pra ninguém! – Falei apático, sem nem me dar ao trabalho de virar para olhar.

sábado, 20 de novembro de 2010

Anestesia

Depois disso, Aretha decidiu me “adotar”. E apesar de todo mau pressentimento acerca dessa aproximação, não conseguia evitar seus telefonemas e visitas. Sabia que era uma forma dela aliviar a falta que sentia do Gabe. Eu também tinha os meus motivos egoístas, e ela sempre me fazia sorrir.


Fosse em casa, fosse na rua, a garota sabia mesmo como se divertir. Qualquer simples atividade ela transformava num evento. Falava sobre qualquer coisa, de política externa à última moda de Paris... Às vezes sem intervalo.


Eu não conseguia me irritar nem mesmo quando sua curiosidade trazia de volta perguntas que eu não gostava de responder.
– É verdade que vocês se beijaram pela primeira vez na Ilha Twikkii, passando férias no chateau da tia Rosa?
– Sua mãe lhe contou, não contou?


– Que irado!

Depois ela engatava outro assunto que não tinha absolutamente nada a ver com a história. Eram nessas tiradas, e em muitas outras parecidas, que eu me distraía e me divertia.


Parei de preocupar. Com Gabe, com Júlia, com o mundo. Sequer ponderei quando Claudinete me perguntou por que “a garota estava sempre por aqui agora”.
– Ela sente saudades do Gabe... – Era minha desculpa predileta.

Eu poderia permanecer com isso tranquilamente enquanto eu fosse um reflexo de Gabriel pra Aretha.


– Mas o Gabriel ta na França, Jack!
– É... – E isso encerrava o assunto.


O tempo voava, eu nem prestava atenção. E estava tudo bom pra mim, eu nunca estava só e sempre tinha o que fazer. Mas confesso que deveria ter prestado mais atenção aos sinais.
Ou talvez eu não quisesse mesmo ter visto.


Então estávamos novamente falando sobre meu relacionamento com Tara, quando ela resolveu soltar:
– Porque vocês terminaram?
– Porque eu sou um idiota.


A minha resposta a assustou, eu desejei saber por que.
– Que cara é essa? – Perguntei.
– Você ainda ama a mamãe?


Não precisei pensar para responder:
– Não. Há muito tempo que não.
– Então porque falou no presente?


– Porque eu sou um perfeito idiota, anjo. Eu nunca faço nada certo. E quando faço algo sempre dá errado...
– Eu não te acho idiota. Nem acho que você faça tudo errado.


Ela chegou mais perto. Perto demais. Eu recuei.
– Não ta na hora da sua aula de química analítica?
– Já passei nessa matéria.


Aretha estava séria e me encarava sem piscar. Recuei mais ainda. Espera! Eu estava fugindo?!
– É, mas não deve faltar aula, mesmo assim.
– Eu não vou, Jack.


– Então vá pra casa Aretha, ou pra balada, não sei... É melhor você ir.
– Porque está me expulsando? – Ela curvou o lábio para baixo.


– Por isso! Porque não quero te ver assim! Porque não posso ser responsável por você! Porque eu sou todo do avesso! Ta tudo errado aqui! Vai embora, Aretha! O Gabriel não está aqui, não está vendo?... Não sei quando vai estar!
– Não estou aqui por causa dele, J. Não é possível que não tenha percebido.


A adrenalina ardeu em minhas veias. Deus, o que fui fazer?!
Eu sou um cretino! Tentei me acalmar. Eu precisava ser racional.


Joguei, na vã tentativa de achar que ela pudesse enxergar o idiota em mim e se arrepender:
– Não sei do que você está falando, Aretha... – A quem eu estava querendo enganar?
Ela se zangou:
– Pára de fingir ser o monstro que acredita ser!


Se não era possível mentir, talvez fosse possível negar.
– Anjo, isso não vai acontecer. Vá para casa...
– Não faça assim, J. Está me magoando...


Ela estava tão perto agora, que eu podia sentir sua respiração no meu rosto. Meu coração disparou, e o ar me faltou.
– Você não tem idéia do quanto ainda vai se magoar se continuar com isso, Aretha...
– Eu... Estou disposta a pagar o preço... Não consigo mais ficar longe de você...


Aretha se debruçou para me beijar. E apesar de cada nível da minha consciência urrar para que eu a repelisse, cada músculo do meu corpo se moldou para recebê-la, e quando seus lábios tocaram os meus, meu coração pareceu enfim, encontrar alento.