quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Despedidas

Foram semanas, então, em que Aretha esteve ainda mais ocupada e menos comigo. Eu não podia ajudar muito a Júlia, a não ser pagando algumas coisas – depois de insistir muito – na forma de presente.


Ela andava tão exausta que às vezes não conseguia chegar acordada ao fim de algum filme que escolhíamos pra ver. Eu compreendia, mas sentia tanto...
– Acorda, Anjo. O filme acabou, eu vou pra casa.


– Ah, não... Dorme aqui... – Disse sonolenta, sem nem mesmo abrir os olhos.
– Dormir onde, Aretha? No sofá? Não cabemos os dois na sua cama.


– Então me leva. – Ela começou a se por sentada.
– Está tarde e você tem um dia cheio amanhã... Vou te levar só pra atrasar mais o seu sono.


Ela pulou pro meu colo.
– A culpa é sua, se você sempre faz valer à pena não dormir.
– Então... Hoje eu vou te dar uma folga... E nem vai ser tanta assim. Aproveite.


– Como se eu quisesse! – Aretha resmungou bem-humorada, enquanto mordia vorazmente o meu pescoço.


O tempo corria frouxo e eu precisava escolher um lugar pra morar, afinal, o dia do casamento de Júlia estava se aproximando e eu queria me mudar antes que os presentes começassem a chegar.


Nesse meio tempo apaguei a quadragésima quarta vela do meu bolo num jantar simples entre amigos. Provavelmente o último que eu ciceronearia na minha antiga casa.


Dois dias depois Aretha chegava para mim chorando compulsivamente. Dona Marlene, sua avó “emprestada”, havia acabado de falecer.


Nestes tempos era difícil saber onde eu era ou não era bem vindo. Por isso eu só compareci ao velório e ao enterro, porque Aretha me pediu. Todos estavam muito abalados. Ainda que Dona Marlene já tivesse certa idade e viesse sofrendo com o Alzheimer, a perda de um ente para sempre, nos fere de uma forma irreversível.


Dona Marlene, a mãe de Otto, era na verdade, tia do Mark, mas era a única “avó” que Thales e Aretha conheceram.


Tara era órfã, e Mark perdeu os pais num acidente de avião quando ainda estava na faculdade. Dona Marlene sempre tratou seus sobrinhos, da mesma forma que tratava seu filho e seu neto, o João. A família que já era pequena, ficou ainda menor.


Todo funeral é triste, é óbvio. E neste, eu nem sabia o que fazer. Se eu cumprimentava Mark e Tara, se ficava na minha, se abraçava Aretha. Decidi começar por Otto. Dei um abraço no meu amigo, mas não disse nada. O que dizer num momento destes? A dor de perder a mãe não é algo consolável. Menos ainda com palavras.


Depois cumprimentei Rosa, e então Mark.
– Eu lamento, Mark.
– Obrigado, Jack.


Olhei ao redor e vi Aretha num canto consolando João. Não consegui avistar Tara, mas não perguntei. 


Thales e Alanis vieram ao meu encontro. Ele me abraçou aos soluços. Era tudo muito desconcertante.


Conversamos um pouco e depois Thales voltou para companhia de seus parentes, mas Alanis me fez companhia.
– Obrigado, querida.
– Ah, Dindo... Quê isso! João está inconsolável. Ele é muito ligado a Aretha, você sabe...


– É... Alguém tinha que defender esse menino do Thales, né?
Alanis sorriu com a lembrança. Thales era mesmo “da pá virada” quando criança. E João que era apenas um bebê, era sua vítima preferida.


Amigos chegaram, amigos saíram. Eu fiquei. Aretha passou por mim e pediu desculpas, mas não havia de quê. Seu primo necessitava mais dela do que eu. No momento que ela precisasse, eu estaria ali.


O cortejo saiu e eu comecei a seguir, lá atrás. Aretha seguia mais a frente, ainda abraçada a João. Foi então que a vi. Tara estava encostada num canto, abatida e sozinha. Em poucos segundos, eu pensei mil vezes se deveria ou não, ir até ela. Optei pelo sim.


– Está tudo bem, Tara? Precisa de alguma coisa ou quer que eu chame alguém? – Perguntei ao me aproximar.
– Não, não chame. Eu estou bem, na medida do possível... Deixe Mark enterrar sua tia. Eu só preciso...


– Tudo bem... – Eu me antecedi.
– É tão difícil!

Eu entendia. Ainda que tarde, Dona Marlene foi a mãe que Tara nunca teve.


Ficamos em silêncio e eu estava desconfortável outra vez. Não sabia o que falar e presumi que se ela estava ali, é porque queria ficar sozinha.


Então eu dei meia volta, mas ela me chamou:
– Jack... Eu... Me desculpe...

Eu não entendia o motivo daquele pedido.


Eu voltei e esperei uma explicação.
– Desculpe pelas acusações sem embasamento que fiz, pelas minhas palavras agressivas e pelo tapa que te dei.
– Foram reações compreensíveis, Tara. Já passou.


– Se mostraram sem fundamento, afinal... Mark te procurou, não foi?
– Ele não falou pra você?


– Não, mas ele tem muita dificuldade de me esconder as coisas, por mais que tente... Não consegue ficar natural. Parece que cometeu um crime... Eu sei que ele e Aretha andam conversando o tempo todo... Apenas deduzi...
– Tara, eu sinto muito. Sei que estraguei tudo e acho que você tem todo direito de me odiar. E eu te juro que tentei evitar... Tentei lutar contra isso, mas não consegui.


– Eu não te odeio, Jack... Você no fundo sabe disso. Eu não consigo te odiar. Mesmo com tudo que passamos. Mesmo quando deixei te amar... O espaço que você conquistou vai ser seu pra sempre, e talvez por isso seja tão duro pra mim. Se eu te odiasse talvez não me magoasse tanto.
– Não precisa fazer isso, Tara.


– Preciso sim. Preciso porque te dei um tapa na cara. Um tapa que veio 20 anos atrasado, mas ainda assim, dei por raiva de mim mesma. Por não conseguir te odiar, mesmo depois de você ter dormido com a Victória daquele jeito, muito embora aquilo tenha necrosado uma parte significativa do meu amor por você.
– Se te serve de consolo, naquela ocasião eu perdi a mulher da minha vida.


– Seu sofrimento nunca foi consolo pra mim, quando vai aprender isso?
– Então, Tara... Olhe para Aretha e veja como ela está sofrendo ao ter que te desapontar toda vez que ela vem pra mim.


Tara caiu no choro.
– Eu queria que fosse tão fácil, Jack! Mas não é! É claro que o sofrimento da minha filha me dilacera! Você não tem idéia do quanto me dói. Então não pense que eu não vejo, que eu não sinto! É muito injusto! Apenas não consigo ser tão racional. E tenho medo, muito medo que ela se sinta como eu.


– Por que tanta dificuldade em enxergar que não existe mais aquele Jack, Tara? Ele desapareceu quando finalmente se deu conta que tinha perdido sua Princesa... Durante 20 anos um novo Jack viveu desacreditado do amor, sem conseguir se entregar de corpo e alma a ninguém, apesar de ter ali, bem do seu lado, muito mais do que ele podia desejar.


– Eu não posso abrir mão do que sinto por ela... Só desistiria de Aretha se ela pedisse isso pra mim. Não tem outra forma, não tem outra maneira... Você não vai poder protegê-la. Não há como evitar que qualquer outro homem pelo qual ela se apaixone a faça sofrer. Mesmo que não seja um cara 25 anos mais velho, mesmo que não seja o ex-namorado infiel de sua mãe.


Tara escutou tudo. Calada e aos prantos. Senti vontade de confortá-la mas não me atrevi.
– Aretha não precisa que vocês me recebam. Apenas que me aceitem.


– Eu estou tentando!!! – Seu tom foi um pouco mais alto. – Desculpe se não é tão fácil assim pra mim! Pode me deixar sozinha um pouco?
– Tara...


Ela não me deixou falar nada:
– Por favor... Jack...

Eu resolvi atender.


Assim que saí dali avistei Aretha vindo em minha direção. Ela parou e me abraçou.
– O João vomitou. Tia Rosa e eu levamos ele até o banheiro. Tia Rosa ficou com ele... – Ela fez uma pausa, para depois concluir já desabando em choro. – Tadinho, Jack! Ele está tão sentido! Vó Marlene morava com tio Otto desde que João nasceu.


Aretha chorou um pouco ainda agarrada a mim, como fez mais cedo, na minha casa. Eu apenas afaguei seus cabelos, em silêncio.


Depois de alguns minutos, ela falou:
– Eu estava procurando você... Onde você estava?
– Estava ali ao lado da capela.


– Fazendo o quê?!
Foi uma pergunta espontânea, mas eu não queria responder naquela hora. Eu ignorei e fiz outra:
– Você não vai voltar para o sepultamento?


– Não... É bobagem, eu sei, mas foi oportuno o João ter passado mal. Não quero ver enterrarem minha avó...
– Eu entendo... Quer que eu te leve pra casa, ou vai voltar com seus pais?


– Vai todo mundo pra casa do tio Otto. Mas eu entendo caso você não queira ir...
– Se você estiver bem, realmente prefiro não, Anjo.


– Estou bem... Mas aceito uma carona até lá...


Eu fiz sua vontade. No percurso, contei sobre a conversa que tive com sua mãe. Eu não sei dizer se ela ficou surpresa, ou feliz, ou triste. Não consegui interpretar sua reação.
– Você vai ficar bem, Aretha?
– Vou. Não se preocupe.


Alguns minutos de silêncio e chegamos na casa de seus tios. Eu parei o carro.
– Qualquer coisa, me liga.
– Posso passar lá mais tarde?


– Desde quando você pergunta se pode ir lá em casa? – Impliquei, sorrindo.
– Você é tão engraçadinho! Eu estou tentando melhorar meus modos.


– Eu não quero que você melhore nada! Está ótima assim...

Grata, ela me beijou.


– É por isso que eu te amo, tá vendo?! A culpa é toda sua!
– Sempre foi, Anjo. Sempre foi...



2 comentários:

  1. Ainnnnnnnnnnnnnn
    É tão difícil para Tara! Ç.Ç
    Não tem como ficar chateada com ela num momento assim. No final acho que ela está sofrendo mais que todos. Por que perdoar é tão difícil e ao mesmo tempo tão libertador?

    AMO!
    bjosmil! *.*

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  2. Mita, também me pergunto isso... =$

    Compreendo a Tara perfeitamente, acho que senti um pouco na pele junto com ela quando escrevi...

    Obrigada, queridona!

    Bjks

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